sábado, 27 de fevereiro de 2010

O que seria atirares-te, pai

Da noite, pai, à ponte, ao rio.

Encontrar-te-iam, encontrar-te-iam dois dias depois
Encalhado entre um ramo e um rochedo.

Pulando do cimo da ponte, pai, o bolso rompendo
Das pedras que foram as paredes da nossa casa
Da nossa casa pai, que desabaste com os punhos.

Encontrar-te-iam só dois sóis depois
Porque estorvavas a passagem de uma canoa.
Terias tantas rugas, tão fundas, é a água correndo
Há tanto tempo pelos caminhos da tua cara
Desde que a casa se desmoronou e o passado com ela.

Pai, nunca pules da ponte, pai, promete.
Pensa em nós, aqui deitados sob o cobertor da neve
Nos escombros da nossa casa, dentro dos restos da lareira
Nunca pules porque seria frio insuportável.
Podes pular, pai, podes pular por alegria,
Podes pular por aventura e por orgulho mas tristeza,
Por tristeza não dês um passo mais, tu que deste tantos
Só porque não queres fugir dela, pai, tu que derrubaste também a casa.

Porque, pai, já passaste a ponte para lá?
Já viste o que existe na outra margem?
Não, pai, sei que nem olhaste
Os teus olhos há muito desfocados
De chorares não vêm dois palmos
Não se lembram da cor do sol.
Pai, ser feliz é possível, escuta o rio
Escuta-nos, cheira a neve, vês o frio e a pele de galinha?
Ouves o murmúrio dos ramos nus?
Não chores por não te brilhar a vida
Se és tu quem com as mão tapas os olhos,
Não chores pai, chora para sentir, mas não chores.
Pula da ponte, sim, pula para nadares calor rio abaixo.

Mas dizer que te deixámos sozinho, pai.
Pai, isso dói muito, entendo que te custe
A crosta do sangue das paredes nas mãos,
Mas nunca te deixámos, pai, lavamos-te as mãos
E sangram as nossas por te achares abandonado, pai.
É que, pai, quando nos congelam as pontas dos dedos
É difícil tentar aquecer o teu coração
É difícil confortar-te com os lábios rebentados
É difícil abraçar-te se nos pendem os braços.
Percebe, pai, ninguém te deixa só, pai
Mas destruíste a casa e fugiste dela,
Não sabemos para onde, e nós esperamos nos escombros,
E gritamos por ti, para que voltes
E tu gritas que nunca hás-de voltar, pai, queres viver a tua vida.
E depois choras a tristeza e a solidão que defendes diariamente
Por tas tentarmos rachar
Afinal o que é que queres, pai?
A porta da nossa tua casa está sempre aberta
Corre sempre o vento impiedoso
Se não voltares, almoçamos contigo como sempre
O jejum amargo da tua mesa.

Mas nunca te atires, pai, não estás só, eu dou-te agora um abraço. Olha, sente-o. Apesar da lápide entre nós, sente o que te amo por seres meu pai. Sentes o meu beijo na tua barba rala, que me picava quando eu era pequenino? Sentes o meu beijo na fotografia da tua casa no cemitério? Nunca te atires pai. Enlouquecia se morresses, tal como tu ensandeceste e depois...

1 comentário:

  1. este emocionou-me,mesmo.("... almoçamos contigo como sempre/ o jejum amargo da tua mesa.")

    Joana Tender

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