terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tudo acabou bem

Havia um velho ditado
Ja tão velho quanto experiente
E nunca foi contrariado
De tão rabugento indigente.

Canta quem o tem contado
(Quem acrescenta também)
Que ele nunca foi terminado.
Que tudo está assim bem
Quando tudo acaba tão bem.

Mas nunca acabou alguém
Com boca para confirmar.

Entretanto o ditado morreu
Com a força do tempo a passar,
A pressa da cidade o esqueceu.
Terminou e acabou bem.

William, que suando o teceu
Não o pode voltar a criar.
William hoje vive bem.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Urso-do-deserto

Entrei na caverna da estivação,
Sou um urso do deserto.
Rasga-me os ossos o verão
E o sol de raios dilacerantes
Desfaz-me o querer a descoberto
(Perdi a pele num cacto presa).

Entrei na caverna da estivação,
Poupo miragens mirabolantes
De me ver a ter certeza.

E aqui ao fresco antecipo
O caminho que tenho a fazer
Com um oásis às carrachulas
(A água enfiada num pipo
E o tempo em que terei mulas
A andar e eu a merecer).

Porque o suor dá muito trabalho
Dá tanto como dobrar estas dunas
À procura de um simples carvalho.

Antecipo caravanas, colunas
De fiéis seguidores a seguir.
Um urso de peito inflamado
(O feito lá virá a seguir
Nas cascavéis de uma ovação)
Com peruca de pelo e de brio.

Espero sobreviver ao verão,
Escondido resistir a este frio.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ori

Qualquer feito que eu faça
Feito foi milhentas vezes
Mais milhentas por contar.

Visto invento a carapaça
Inventada tantas vezes
E ouso não a carregar.

Inventei assim o lar.

Já está tudo registado
Estão rochedos e corais
Pedaços da face da lua.

O que falta ser contado?
O que há para dizer mais
Que não se veja da rua?

Porquê ser o inventor
Da carapaça de pousar?

Nem quieto me vou por
Já um anónimo qualquer
Se lembrou de vegetar.

A ideia que Ele me der
Nem a hei-de já tentar.

Vou ficar na carapaça
A ver filmes que fizeram
A ouvir coisas que disseram
Enquanto a vida não me passa.
Devagar, sem o dar conta
Perco o gosto do que gosto.
Perco o norte e perco a ponta
Desta lápis por estrear.

Como um céu que foi deposto
A aprender a flutuar.

Perco o querer de ser um gosto,
De me chamar o que me agrada.
Já não sei que nome trago,
De onde venho, para que estrada.

E sou feliz sinceramente
Quer me seja negro o fardo
Quer clara tenha a mente.

Tanto dá que a guerra vença
Ou a paz na desavença.

Minha alma é indiferença.

E sentado, onde calhei estar
Sinto a terra que não pensa,
Que se pensa dá-me igual.
E se um garfo me falar
Se me amar um avental
Eu encolherei os ombros
Porque um garfo é só normal.

Passe um lápis a voar
Caso o lápis tenha ponta
Hei-de olhar sem ele dar conta
Hei-de querer o desejar
E encolherei os ombros.

Oh, já tão morto, morto estou!
Quem me tira destes escombros
De futuros que ruíram
E descobrem quem eu sou
Para eu saber quem viram?

Eu encolherei os ombros.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A creditar

As coisas sabem-me mal.

Correr sabe-me mal
E o suor não sabe a sal,
Sabe a podre e a cansaço.
Nem bem sabe um abraço
Sabe ao mofo de perder.
E até a água tem sabor
O de vazio, mal sacia.
Ao que me sabe viver?
Sabe a áspero, a um favor
Que faço e venho a fazer
De vazio, mal sacia.
A minha cama vazia
Sabe a uma cama vazia
Sabe ao mijo que perdia
Quando sonhar era ser.

Sempre fiz xixi na cama.
Agora assim cresci
E crescer não sabe a nada.
Nem dormir já sabe a cama.
Nem as coisas que já vi
Quando via escancarada
A vista por gostar.
Já nem o mijo sabe igual
Sabe pior, mas sabe mal
Sabe a não me importar.

Há tempos trinquei um limão
E cairam-me os dentes
(Nem notei, a dentição).
Se já nem cartas rasgo
Nem sorrio a queridos entes
Nem me sabe nem me engasgo;
Se já nem unhas tenho
Para roer pela novela
Que já nem me entretenho;
Nem tempo a esperar por ela
E morder-lhe ousar pescoço
Encher baldes diferentes
Para tentar descer um poço
Pra que é que quero os dentes?

Aliás, levem-me já também
O corpo que me deu minha mãe.
Assim não finjo que vagueio
De olhar posto no chão
A contar pedras do passeio
E a voltar confirmação.

Contar sabe-me a bolor.
O que me interessam os passeios
E quantas pedras há-de ter?
Fosse ao menos explorador
De passeios intrasponíveis
Como foi Brito Capelo.
Ai se eu me pudesse perder
Em esquinas mal possíveis
Com mapas brancos terríveis
E botas perecíveis
E mais rimas com íveis
Para que ainda me saiba pior
Imaginar-me Roberto Ivens.

Mas o que é que queres descobrir
A escrever dúzias de poemas?
Mais letras por ouvir?
A dona frase e seus problemas?
Querias escrever um romance.
Querias ser um narrador
Que mais durasse que um relance
E apertar a mão a Salomão
E sentares-te à sua beira
Indiferente se o tempo passa ou não.
Querias ser um narrador
Sem passar do Bojador, quanto mais dor!,
E sentares-te à sua beira
Sem uma ideia, uma maneira?
Um plim de uma ideia?
Nem uma estrofe bonita ou meia?

As coisas sabem-me mal.

Falta-me uma pitada de imortal,
Um épico em colher de chá!,
Falta-me um nadinha de lendário,
Falta tudo o que não há.
Falta-me ser um ser ao contrário
Para que alguém ao passar algum dia
Se lembre de me tirar uma fotogragia.
E a sopa espalhada no chão
Nem insossa nem magistral
É um jantar a água e pão.

Mas perdoem-me, meu senhores.
Eu fui talhado para gravar a história
Fui marcado para firmar a memória.
Sou da fibra dos avôs navegadores
Que quando se lhes acabou o mar
Escolheram içar as velas e saltar.

E saltando inventar
Especiarias, Adamastores.

Sou do tecido dos Argonautas
Carrego a cruz das cruzadas
Sou como as linhas das pautas
Escrever direito nas erradas.

Notas de harpas abençoadas.

E minha pele de Aladino
Saltando as noites mil e uma
Caso o meu dedo pequenino
Bata na esquina do sofá
Inchará, verterá espuma
Como a unha de um majará
Sangrará e cairá
Como unha qualquer uma.

(Perdi as unhas há muitas cadeiras)

Então e a matéria dos imortais
O tal éter das Evas primeiras?
Então as unhas dos sem iguais
Também traem a apodrecer?

Minha pele é Deuses ar
Do paraíso e puros frutos.
Mas não é de Deuses ar,
É por eu acreditar.
Mas não basta acreditar.
É preciso acreditar mais que cinco minutos
Depois de começar a acreditar.

1 DDCAA
2 DDCAA

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Planos rasgados

Ouvindo leigo um violino
Faria uma fabulosa sinfonia.
Mas surgia tango argentino
Seria uma lenda dançante
E Mozart já morto esquecia.
Assisti porém a desfilar.
Qual mais belo semblante
Mais que o meu fascinaria?
E um escritor que me escreveu
Coisas de me apaixonar,
Decidi ser Horácio e Orfeu.

Quantos tijolos primeiros
Deixei espalhados no chão
Projectos de palácios cimeiros
Plantas de cada dia mansão.

E ninguém me disse que não.
Foi ver os céus a arranhar
E pensar logo outro lar.

E tudo o que deixei atrás
Foram estilhaços, pedaços
Rastilhos de desmoronar,
Cimento seco, parcas pás,
Foi um caminho sem passos
Porque é preciso caminhar.

Deixei o lixo, o abandono,
Os pilares entre o betão
Deixei vontade, caí o Outono
As folhas secas de ilusão.

Nunca uma flor colorida
Nasce entre cinzas sadia.
Cresce uma erva partida
Mortiça a só fumo sorvia.

Porque navegar tanto diz
Se já de porto não sais?
Ò vida, que sejas tu feliz.
Eu já vou tarde demais.

domingo, 1 de agosto de 2010

Argh

Há algo de
Veremelho
Que consome
Incandescente
Cada poro mais pequeno
Da pele.
Queima a fornalha
Do peito
Em excesso.
Alguém me deixou
Não sei quem
Uma telescópio
Em cima de mim
Apontado ao sol
O sol já nu
De desafiarem.
Fogo
Nasce um fogo
Na roupa.
Suor
Suor é o fogo da roupa
Combustível
Do fogo do que quer que seja mais
Menos alma.
Evaporou.
Alma?
Nem a mais imaculada
Resiste
Ao fogo dos infernos.
E ardem mim restos de alma
Pedaços igneos
Rastilhos
Estilhaços
Pela pele.
Cada poro mais pequeno.
Queria dormir
Sim
Dormirei
Como uma cruz de madeira
Numa fogueira.

01/08/2010

Estou estendido em cima do sol
No dorso de um ramo da cerejeira.
Sou rubros caroços e o corpo mole
À suculenta brisa ligeira.
Sou sua recortada sombra serena
A viver esta tarde amena.

E sorvo o ócio num assobio.
Cumprimento todas as andorinhas
Sentadas em galhos dançantes.
Ouço suave o ressonar ao rio
Ouço as águas sonhar quietinhas
com vales dourados muito distantes.

Porque ao tronco bem amarrado
Dorme o tempo em cordas preguiça
Apanhado por ter tropeçado.
E a árvore canta movediça
Morosa sem pressa sonando
Canções de repouso inspirando.

Vem leve flutuando um odor
Não sei se de amoras, se alecrim.
Vem às asas de um cuco tenor
Que cucu dizendo, diz é jasmim.

É um perfume que não conhecia
Essência de calma alegria.

É uma tarde de tantas iguais.
O viçoso pomar soalheiro
Ou o ronronar dos animais.
São as cores a florescer
O prazer de um bocejo inteiro,
Um gato num galho que ri
Das cócegas que lhe faz crescer
Cócegas de não envelhecer.

O gosto de gatas dizer:
"Como outras, esta tarde vivi
Iguais às outras, não revivi"

Lambo o deleite, ruivo pelo
Esculpo as garras deste galho
E inebriado fico a vê-lo
Livre que sou de desfrutar.
Tenho o tempo do que valho
Mais que tempo sete vidas.
Passei esta tarde a olhar
Montanhas entretanto comidas.

A tarde de hoje foi que dia?
Não sei, estive a ouvir cantar
Há por do sol se o calendário acabar.
Não sei, mas à tarde vivi-a.