quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A creditar

As coisas sabem-me mal.

Correr sabe-me mal
E o suor não sabe a sal,
Sabe a podre e a cansaço.
Nem bem sabe um abraço
Sabe ao mofo de perder.
E até a água tem sabor
O de vazio, mal sacia.
Ao que me sabe viver?
Sabe a áspero, a um favor
Que faço e venho a fazer
De vazio, mal sacia.
A minha cama vazia
Sabe a uma cama vazia
Sabe ao mijo que perdia
Quando sonhar era ser.

Sempre fiz xixi na cama.
Agora assim cresci
E crescer não sabe a nada.
Nem dormir já sabe a cama.
Nem as coisas que já vi
Quando via escancarada
A vista por gostar.
Já nem o mijo sabe igual
Sabe pior, mas sabe mal
Sabe a não me importar.

Há tempos trinquei um limão
E cairam-me os dentes
(Nem notei, a dentição).
Se já nem cartas rasgo
Nem sorrio a queridos entes
Nem me sabe nem me engasgo;
Se já nem unhas tenho
Para roer pela novela
Que já nem me entretenho;
Nem tempo a esperar por ela
E morder-lhe ousar pescoço
Encher baldes diferentes
Para tentar descer um poço
Pra que é que quero os dentes?

Aliás, levem-me já também
O corpo que me deu minha mãe.
Assim não finjo que vagueio
De olhar posto no chão
A contar pedras do passeio
E a voltar confirmação.

Contar sabe-me a bolor.
O que me interessam os passeios
E quantas pedras há-de ter?
Fosse ao menos explorador
De passeios intrasponíveis
Como foi Brito Capelo.
Ai se eu me pudesse perder
Em esquinas mal possíveis
Com mapas brancos terríveis
E botas perecíveis
E mais rimas com íveis
Para que ainda me saiba pior
Imaginar-me Roberto Ivens.

Mas o que é que queres descobrir
A escrever dúzias de poemas?
Mais letras por ouvir?
A dona frase e seus problemas?
Querias escrever um romance.
Querias ser um narrador
Que mais durasse que um relance
E apertar a mão a Salomão
E sentares-te à sua beira
Indiferente se o tempo passa ou não.
Querias ser um narrador
Sem passar do Bojador, quanto mais dor!,
E sentares-te à sua beira
Sem uma ideia, uma maneira?
Um plim de uma ideia?
Nem uma estrofe bonita ou meia?

As coisas sabem-me mal.

Falta-me uma pitada de imortal,
Um épico em colher de chá!,
Falta-me um nadinha de lendário,
Falta tudo o que não há.
Falta-me ser um ser ao contrário
Para que alguém ao passar algum dia
Se lembre de me tirar uma fotogragia.
E a sopa espalhada no chão
Nem insossa nem magistral
É um jantar a água e pão.

Mas perdoem-me, meu senhores.
Eu fui talhado para gravar a história
Fui marcado para firmar a memória.
Sou da fibra dos avôs navegadores
Que quando se lhes acabou o mar
Escolheram içar as velas e saltar.

E saltando inventar
Especiarias, Adamastores.

Sou do tecido dos Argonautas
Carrego a cruz das cruzadas
Sou como as linhas das pautas
Escrever direito nas erradas.

Notas de harpas abençoadas.

E minha pele de Aladino
Saltando as noites mil e uma
Caso o meu dedo pequenino
Bata na esquina do sofá
Inchará, verterá espuma
Como a unha de um majará
Sangrará e cairá
Como unha qualquer uma.

(Perdi as unhas há muitas cadeiras)

Então e a matéria dos imortais
O tal éter das Evas primeiras?
Então as unhas dos sem iguais
Também traem a apodrecer?

Minha pele é Deuses ar
Do paraíso e puros frutos.
Mas não é de Deuses ar,
É por eu acreditar.
Mas não basta acreditar.
É preciso acreditar mais que cinco minutos
Depois de começar a acreditar.

1 DDCAA
2 DDCAA

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