quarta-feira, 3 de março de 2010

Naufrágio





Pai,
Hoje naufragou um navio
E tu ainda não voltaste.
Esperamos à mesa a beber
As lágrimas do mar que te levou
Ninguém sabe para onde, pai.
Estamos à tua espera para comer.
Há um cobertor para te secares
Caído na tua cadeira vazia
Mas não vais voltar, pois não?

Pai, os rugidos dos relâmpagos
Arrancam-nos o peito e as portadas das janelas
A mãe ainda ve esperança nos relâmpagos que rasgam a noite
Esperança era o nome do teu navio.

E agora, debaixo de que onda voas, pai?
Estás perdido em que rochedo?
Dói pai?
Descobriste a Atlântida?
E o cobertor tão enrugado
Seco da falta que fazes
Aqui a navegar em terra firme.

Pai?
Pai és tu?
Voltaste?
Pai, está a parar de chover.
Pai, vem sol das frinchas da tua porta!
Cheira à saudade do teu cachimbo!
Pai, és tu? Pai, vou entrar...

Foi o vento.
Foi o vento que atirou com a porta
Contra a parede de eu sonhar
AS imagens do teu regresso.
Morreste.
Foi a rapidez de um estilhaço
E agora ficaram as redes penduradas
Nos escombros da frente da casa
E as roupas que tinhas no quarto
Estão comidas pelas traças da memória.
Lembras-te dos barcos que me ensinaste a fazer com o papel de jornal?
Agora deixo-os na praia
Entre a tempestade que não parou
Porque a saudade também não para.
Só para que saibas
Que as almas e o que cá deixam não se extinguem nunca.

Mas pai, tu domavas o mar e calavas as ondas
Paravas os ventos com as palmas das mãos
Sabias o caminho, contavam-te os búzios
Sabias saltar entre as anémonas, por cima das nuvens
Porque é que não voltaste, como todos os dias
Quando trazias as historias no cesto?
Porque é que hoje o relato o conta a fúria dos trovões
Pai, o mar sai do leito, o mar galga a terra
As telhas arrancam sem voz que as segurem
Pai, a chuva é o diluvio de hoje
Pai, são barcos de jornais

Porque é que choves?

2 comentários:

  1. Apetece-me comentar... não porque entenda a história que contas, mas porque me fez lembrar a morte real do meu pai(que sempre quis matar, pela violência fisica e psicológica que exercia sobre mim)!
    Com ele eu não construi barcos de papel... mas experimentei nódoas negras e raiva e tempestades incuráveis).
    O teu pai morreu ou estás a dar-lhe "cicuta" a beber?
    Não poderão voltar a fazer barcos de papel, ainda que a tempestade te inunde?
    Não podes usar um guarda chuva para te protegeres? para o proteger? e guardar sempre o "velho cobertor" para o teu pai se secar...
    Afinal a função dos filhos, não é viajar com os pais rumo a Atlantidas desconhecidas?... e esperar que eles des(atem) nós... e ajudá-los a deixarem de chover!
    Ah... quem me dera que hoje, apesar das nódoas negras, eu pudesse dizer ao meu pai "gosto de ti" e estender-lhe o cobertor dos afectos!
    Faz isso, silenciosamente, num simples abraço!

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  2. Obrigado por teres comentado. É que, apesar de tudo, parece sempre preciso um lembrete para nos dedicarmos como devíamos às pessoas, não é? Ainda há poucos dias a minha avó me disse que se deve dar carinho a quem cá está e não quando já se foi, e acho que ela tinha razão. Mas é difícil pensar sempre nisso todos os dias, com tanta gente de rotina a meu lado.
    O meu pai está numa situação difícil, nada que se assemelhe à tua, mas sinto-me impotente para o ajudar, os abraços não lhe dão ânimo. É esse o temporal.
    Mas vindo esse conselho de quem teria, suponho, motivos para guardar algum rancor (talvez não seja a palavra correcta), explicar-me como faz falta o que ainda tenho... Bem, só posso dizer obrigado. Por nunca ter vivido nada do género, nem o poder imaginar, apenas digo que guardo com muita gratidão o que escreveste.

    Gonçalo

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